domingo, 23 de setembro de 2012

Resenha de "Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx"

publicado na Revista Outubro nº 7

Por Hector Benoit
PROFESSOR DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Finalmente é traduzida em português esta obra fundamental a respeito da gênese e
estrutura de O capital de Marx. Este trabalho de Roman Rosdolsky, escrito e publicado
há mais de trinta anos, está longe de envelhecer, apesar do tempo transcorrido e da
muita água que rolou, de lá para cá, na história, na prática e na teoria marxista. Para
compreender a permanência, o vigor e o estilo desta obra, não é sem significado – como
faz esta cuidadosa tradução brasileira realizada por César Benjamin – recordar a longa e
difícil trajetória do próprio autor: nasceu em 1898, estudou em Praga e Viena, militando
durante a Primeira Guerra no movimento da juventude socialista. Após a Revolução
Russa, colaborou com o Instituto Marx-Engels de Moscou, dirigido por Riazanov. Nos
anos 1930, rompeu com o stalinismo, voltando para a sua cidade natal, Lvov. Durante a
Segunda Guerra Mundial, caiu nas mãos da Gestapo, foi preso e deportado para os
campos de concentração do regime nazista. Em 1947, emigrou para os Estados Unidos,
mas, ao contrário de tantos outros que encontraram fortuna nas universidades americanas,
foi perseguido, desta vez, pelo macartismo, sendo obrigado a escrever este livro – como
narra o próprio autor no prefácio da obra – contando apenas com os parcos recursos
bibliográficos de sua própria biblioteca particular. Quando manuseou em 1948 um dos
raríssimos exemplares dos Grundrisse, conta Rosdolsky que percebeu logo que estava
diante de uma obra fundamental para a teoria marxista e dedicou os restantes anos de
sua vida a escrever sobre estes manuscritos de Marx.. Roman morreu em Detroit, no
mesmo ano que assinava o prefácio desta obra, datado de março de 1967.
Nesse prefácio, o próprio autor descreve, muito modestamente, os dois objetivos
principais que possuía ao escrever este livro: em primeiro lugar, visava apenas comentar,
de maneira didática, os Grundrisse (os manuscritos de Marx de 1857-1858), procurando
esclarecer e divulgar, para um círculo mais amplo de leitores, a importância desse difícil
texto publicado pela primeira vez em Moscou, somente em 1939; em segundo lugar, o
autor pretendia ressaltar algumas descobertas teóricas ali contidas, entre elas, a questão
da gênese e estrutura dialéticas da obra de Marx, mostrando que a influência de Hegel
estava mais presente no pensamento de Marx do que até então haviam percebido a
maioria dos leitores (com as significativas exceções de Lukács e Lenin). Humildemente,
ainda no prefácio, Rosdolsky confessava que não era nem economista nem filósofo
profissional, e observava que só se atrevera a escrever este livro porque não existia mais
então, no pós-guerra, uma escola de teóricos marxistas – como existira na primeira terça
parte deste século – que estivessem preparados para tal tarefa. Comentava que “a última
geração de teóricos marxistas dignos deste nome já nos deixou, na maioria dos casos
como vítimas do terror, hitlerista ou stalinista”, e acrescentava que “isto interrompeu
por décadas o desenvolvimento do patrimônio ideológico marxista”. Assim, afirmava
Rosdolsky, ainda no prefácio, que foi somente nestas circunstâncias desfavoráveis que se
atreveu a apresentar o seu trabalho, “por mais limitado e incompleto que possa ser”,
tendo como esperança que depois dele viesse gente mais jovem, “para quem a teoria de
Marx volte a ser uma fonte viva de conhecimentos e da prática que se guia por ela”.
O autor morreu em 1967 e, infelizmente, não pôde ver o justificado sucesso de sua
obra, hoje traduzida nas principais línguas, e presença obrigatória em qualquer bibliografia
sobre os Grundrisse e sobre questões metodológicas de O capital. A obra, com sua
grande profundidade conceitual e rigor teórico, merecidamente, teve uma trajetória que
ultrapassou de longe a excessiva modéstia de seu autor. Por outro lado, talvez, felizmente,
o autor não pôde ver o aprofundamento da crise histórica do marxismo, tanto na prática
como na teoria. Além da derrocada da União Soviética e de todo o bloco socialista,
assistimos nas últimas décadas o surgimento de uma esquerda não dialética, totalmente
afastada de Hegel e da tradição filosófica, que conhece muito mal a Marx (sobretudo,
aquele dos Grundrisse e de O capital), ou quando o conhece, o mescla com toda uma rede
de conceitos sociológicos ou econômicos não-marxistas, absolutamente externos a
qualquer tradição revolucionária. Não por acaso, esses diversos teóricos, nas últimas
décadas, dedicaram-se mais a “completar” o que Marx não teria pensado, sem nem
antes tentar (humildemente e modestamente como Rosdolsky) esgotar a compreensão
do que o próprio Marx realmente disse. Junto a estes, no caldo destes “avanços” teóricos,
surgiu toda uma “esquerda” que repudia qualquer tradição revolucionária marxista e,
sobretudo, qualquer vínculo com a tradição bolchevique.
Esta obra de Rosdolsky, em sentido contrário a tudo isso que está aí, é exemplar
duplamente. Em primeiro lugar, pela modéstia e humildade de tentar ler, compreender e
reproduzir o que Marx realmente disse, e em segundo lugar, por mostrar também que a
leitura imanente e rigorosa de Marx não só é compatível como também é inseparável
dialeticamene do projeto revolucionário marxista. Esta dupla exemplaridade se manifesta
claramente no cumprimento radical dos dois objetivos principais da obra, acima mencionados:
comentar os Grundrisse e ressaltar certas descobertas feitas por Marx nesse período.
Em primeiro lugar, ao comentar os Grundrisse, o autor se limita realmente a
reproduzir as idéias mais importantes ali contidas, dentro do possível, como ele próprio
diz, “com as próprias palavras de Marx”. O principal comentador a que recorre é o
próprio Marx anterior e posterior aos Grundrisse. Com essa leitura fiel ao texto original,
e com essas idas e vindas pelos textos das diversas épocas de Marx, Rosdolsky procura
apreender o processo de gênese das principais categorias do pensamento deste autor,
descrevendo como elas se esboçam e em que estágio se encontram no momento dos
manuscritos de 1857-1858. Este objetivo é cumprido nas partes II a VI da obra. Seguindo
em grande medida a própria estrutura dos Grundrisse, temos aqui o seguinte percurso:
a parte II estuda a formulação de Marx sobre o dinheiro; a parte III estuda o processo de
produção; a parte IV, o processo de circulação; a parte V, o capital produtivo, lucro e
juros; e a parte VI estuda algumas reflexões de Marx sobre a ordem social socialista e a
reificação das categorias econômicas.
O outro objetivo que se propõe Rosdolsky – ressaltar alguns desenvolvimentos teóricos
contidos nos Grundrisse – é cumprido nas partes I e VII da obra. Na parte I, o autor nos
descreve como nasceram os Grundrisse e como estes se articulam com O capital. Nessa
parte, é particularmente importante a discussão sobre os diversos planos para a redação
de O capital. O plano de 1857 possuía seis livros (ou capítulos ou seções), tudo isso
antecedido de uma introdução na qual se colocariam “as condições abstratas mais gerais
que correspondem em maior ou menor medida a todas as sociedades”. Já em 1858
renuncia a essa introdução, pois, considera que não é correto antecipar resultados que
não foram ainda demonstrados. Por volta de 1866, ou seja, cerca de nove anos depois, é
que Marx chega ao plano que será o definitivo. Os três primeiros livros (capital, propriedade
da terra e trabalho assalariado) são assimilados no novo plano, enquanto que os três
últimos (estado, comércio exterior, mercado mundial e crises) foram abandonados.
Rosdolsky discute como os planos se modificam, como certos materiais foram incorporados
e como outros teriam, talvez, permanecido sem plena realização, justificando a teoria das
lacunas na obra de Marx. Aqui Rosdolsky nos mostra já a importância de compreender os
diversos níveis de abstração em que trabalha Marx e como ele luta, de maneira permanente,
para encontrar a expressão dialética desse conteúdo. Tema este que nos remete a Hegel
e ao qual Rodolsky voltará durante todo o seu livro.
Após estudar internamente e detalhadamente os Grundrisse (nas partes II a VI, já
mencionadas) Rosdolsky conclui a obra, na parte VII, procurando mostrar os resultados
teóricos de sua leitura dos Grundrisse. Mostra, por exemplo, que a polêmica em torno
dos esquemas de reprodução de Marx, na verdade, carrega incompreensões estruturais
da sua obra e que o autor de O capital nunca teve intenção de ir mais longe do que
aquilo que foi ali atingido. Da mesma forma, procura mostrar que a crítica de Böhm-
Bawerk ao problema do trabalho qualificado, como aquela de Joan Robinson à teoria do
valor, assim como certos desenvolvimentos do que chama “economia neomarxista”,
podem ser superados pela leitura atenta dos Grundrisse. A publicação, a leitura e o
estudo destes manuscritos carregaria assim potencialmente a superação de diversas
críticas e de problemas metodológicos que a teoria marxista havia enfrentado, até
então, sem sucesso. Já nas observações finais, Rosdolsky chega mesmo a afirmar que
a leitura destes manuscritos de 1857-1858, havendo nos introduzido no laboratório
econômico de Marx e nos mostrado as sutilezas de sua metodologia, nos libertariam
inclusive da necessidade de estudar toda a lógica de Hegel.
Sem dúvida, as profecias otimistas de um grande desenvolvimento da teoria
marxista, graças e através dos Grundrisse, não se realizaram. Talvez, no entanto,
diria Marx (e o próprio Rosdolsky): “estas profecias não se realizaram por razões
externas à própria teoria”. Pois, contra Hegel, e contra leitores como Giannotti e Ruy
Fausto, afirma corretamente Rosdolsky, seguindo a Marx, que o leitor não deve
chegar à idéia de que as categorias econômicas são outra coisa que representações
de relações reais, assim como não deve acreditar que a derivação lógica dessas
categorias pode se produzir independentemente da história. Ora, aquilo que vale
para as categorias econômicas, vale também para a própria teoria marxista. A brilhante
escola marxista do começo do século XX, assim como o próprio Rosdolsky e este
livro aqui resenhado, são dialeticamente inseparáveis da história da revolução russa
de 1917. Da mesma forma, a crise atual da teoria marxista é inseparável da crise
histórica da direção revolucionária.



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